quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

ENEGRESCENDO O FEMINISMO- Sueli Carneiro

ENEGRESCENDO O FEMINISMO

Sueli Carneiro/GELEDÉS

Enegrecendo o feminismo é a expressão que vimos utilizando para designar a trajetória das mulheres negras no interior do movimento feminista brasileiro. Buscamos assinalar, com ela, a identidade branca e ocidental da formulação clássica feminista, de um lado; e, de outro, revelar a insuficiência teórica e prática política para integrar as diferentes expressões do feminino construídos em sociedades multirraciais e pluriculturais. Com essas iniciativas, pôde-se engendrar uma agenda específica que combateu, simultaneamente, as desigualdades de gênero e intragênero; afirmamos e visibilizamos uma perspectiva feminista negra que emerge da condição específica do ser mulher, negra e, em geral, pobre, delineamos, por fim, o papel que essa perspectiva tem na luta anti-racista no Brasil.
Ao politizar as desigualdades de gênero, o feminismo transforma as mulheres em novos sujeitos políticos. Essa condição faz com esses sujeitos assumam, a partir do lugar em que estão inseridos, diversos olhares que desencadeiam processos particulares subjacentes na luta de cada grupo particular. Ou seja, grupos de mulheres indígenas e grupos de mulheres negras, por exemplo, possuem demandas específicas que, essencialmente, não podem ser tratadas, exclusivamente, sob a rubrica da questão de gênero se esta não levar em conta as especificidades que definem o ser mulher neste e naquele caso. Essas óticas particulares vêm exigindo, paulatinamente, práticas igualmente diversas que ampliem a concepção e o protagonismo feminista na sociedade brasileira, salvaguardando as especificidades. Isso é o que determina o fato de o combate ao racismo ser uma prioridade política para as mulheres negras, assertiva já enfatizada por Lélia Gonzalez, "a tomada de consciência da opressão ocorre, antes de tudo, pelo racial"3.
A fortiori, essa necessidade premente de articular o racismo às questões mais amplas das mulheres encontra guarida histórica, pois a "variável" racial produziu gêneros subalternizados, tanto no que toca a uma identidade feminina estigmatizada (das mulheres negras), como a masculinidades subalternizadas (dos homens negros) com prestígio inferior ao do gênero feminino do grupo racialmente dominante (das mulheres brancas).
Em face dessa dupla subvalorização, é válida a afirmação de que o racismo rebaixa o status dos gêneros. Ao fazê-lo, institui como primeiro degrau de equalização social a igualdade intragênero, tendo como parâmetro os padrões de realização social alcançados pelos gêneros racialmente dominantes. Por isso, para as mulheres negras atingirem os mesmos níveis de desigualdades existentes entre homens e mulheres brancos significaria experimentar uma extraordinária mobilidade social, uma vez que os homens negros, na maioria dos indicadores sociais, encontram-se abaixo das mulheres brancas.
Nesse sentido, racismo também superlativa os gêneros por meio de privilégios que advêm da exploração e exclusão dos gêneros subalternos. Institui para os gêneros hegemônicos padrões que seriam inalcançáveis numa competição igualitária. A recorrência abusiva, a inflação de mulheres loiras, ou da "loirização", na televisão brasileira, é um exemplo dessa disparidade.
A diversificação das concepções e práticas políticas que a ótica das mulheres dos grupos subalternizados introduzem no feminismo é resultado de um processo dialético que, se, de um lado, promove a afirmação das mulheres em geral como novos sujeitos políticos, de outro exige o reconhecimento da diversidade e desigualdades existentes entre essas mesmas mulheres.
Lélia Gonzalez faz sínteses preciosas que balizam a discussão: a primeira delas diz respeito às contradições que historicamente marcaram a trajetória das mulheres negras no interior do Movimento Feminista Brasileiro, e a segunda refere-se à crítica fundamental que a ação política das mulheres negras introduziu no feminismo e que vem alterando significativamente suas percepções, comportamentos e instituições sociais. De acordo com González, as concepções do feminismo brasileiro padeciam de duas dificuldades para as mulheres negras: de um lado, o viés eurocentrista do feminismo brasileiro, ao omitir a centralidade da questão de raça nas hierarquias de gênero presentes na sociedade, e ao universalizar os valores de uma cultura particular (a ocidental) para o conjunto das mulheres, sem as mediações que os processos de dominação, violência e exploração que estão na base da interação entre brancos e não-brancos, constitui-se em mais um eixo articulador do mito da democracia racial e do ideal de branqueamento. Por outro lado, também revela um distanciamento da realidade vivida pela mulher negra ao negar toda uma história feita de resistências e de lutas, em que essa mulher tem sido protagonista graças à dinâmica de uma memória cultural ancestral – que nada tem a ver com o eurocentrismo desse tipo de feminismo 4.
A consciência de que a identidade de gênero não se desdobra naturalmente em solidariedade racial intragênero conduziu as mulheres negras a enfrentar, no interior do próprio movimento feminista, as contradições e as desigualdades que o racismo e a discriminação racial produzem entre as mulheres, particularmente entre negras e brancas no Brasil. O mesmo se pode dizer em relação à solidariedade de gênero intragrupo racial que conduziu as mulheres negras a exigirem que a dimensão de gênero se instituísse como elemento estruturante das desigualdades raciais na agenda dos Movimentos Negros Brasileiros.
Essas avaliações vêm promovendo o engajamento das mulheres negras nas lutas gerais dos movimentos populares e nas empreendidas pelos Movimentos Negros e Movimentos de Mulheres nos planos nacional e internacional, buscando assegurar neles a agenda específica das mulheres negras. Tal processo vem resultando, desde meados da década de 1980, na criação de diversas organizações de mulheres negras que hoje se espalham em nível nacional; de fóruns específicos de discussões programáticas e instâncias nacionais organizativas das mulheres negras no país a partir dos quais os temas fundamentais da agenda feminista são perscrutados pelas mulheres negras à luz do efeito do racismo e da discriminação racial. Nesse sentido, apontamos a seguir os principais vetores que nortearam as propostas do movimento, o que resultou em mudanças efetivas na ótica feminista.

FONTE:
Estud. av. v.17 n.49 São Paulo sep./dic. 2003

doi: 10.1590/S0103-40142003000300008
MULHER, MULHERES

Mulheres em movimento

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